ODS 18 e o desafio da diversidade e inclusão racial no setor de O&G

Setor
Publicado em 20 de novembro de 2025 | Atualizado em 24 de novembro de 2025

Criados pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2015, os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) foram estabelecidos para enfrentar os principais desafios globais até 2030. Oito anos depois, em 2023, foi criado o ODS 18 – Igualdade Racial –, que visa eliminar o racismo e a discriminação étnico-racial contra povos indígenas, afrodescendentes e grupos populacionais afetados por múltiplas formas de discriminação. 

Essa inclusão é particularmente relevante no Brasil, onde, segundo o Censo 2022 do IBGE, pessoas pretas e pardas seguem sendo a maioria. De acordo com o levantamento, cerca de 92,1 milhões de pessoas (ou 45,3% da população) se declararam pardas, marcando a primeira vez, desde 1991, que o grupo predominou no levantamento, enquanto 20,6 milhões (equivalente a 10,2%) se declararam como pretas¹ 

No mesmo ano, a população ocupada de cor ou raça branca ganhava, em média, 64,2% mais do que a de cor ou raça preta ou parda, e os homens, 27,0% mais que as mulheres, sendo que mulheres e homens de cor ou raça preta ou parda recebiam rendimentos inferiores aos das pessoas brancas². 

Além disso, dados do estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil³, também do IBGE, revelaram que, em 2021, 69% dos cargos gerenciais era ocupados por brancos, enquanto 29,5% eram ocupados por pretos e pardos. Quando se olha para as pessoas abaixo da linha da pobreza (renda inferior a US$ 5,50/dia), 34,5% eram pessoas pretas e 38,4%, pardas. 

Para marcar o Dia da Consciência Negra, o Além da Superfície conversou com Janaina Gama, consultora sênior em Diversidade & Inclusão, sobre os desafios e caminhos para transformar a equidade racial em realidade no setor de petróleo, gás e biocombustíveis.  

1. A partir de uma leitura do cenário global, como você avalia o estágio do Brasil em relação à agenda de Diversidade, Equidade e Inclusão? 

Essa pergunta não tem uma única resposta. O Brasil, apesar de ser um país, tem dimensões continentais. Além dessa questão de tamanho, de porte, a gente vê que que cada uma das organizações está no seu passo. Nesse processo, tem ainda a questão cultura e regional.  

Quando olhamos as discussões sobre o cenário de diversidade — seja em fóruns, eventos, MBAs ou capacitações —, percebemos uma concentração muito grande no Sudeste. Como consultora, sou muito mais demandada para atuar nessa região do que no Nordeste ou no Sul. 

Então, diante de todo esse tamanho continental, as empresas vão estar em caminhos e estágios diferentes de inclusão desse tema.  

 

2. De uns anos para cá, temos visto um avanço das ações de DE&I nas empresas de petróleo, gás e biocombustíveis — muitas iniciaram pela pauta de gênero e hoje já contam com grupos de afinidade e comitês de diversidade. Como você avalia essa evolução dentro do setor? 

Geralmente, as empresas privadas começam pela pauta de gênero, como se esse conteúdo fosse mais fácil de abordar dentro das empresas. Ele é mais aceitável, vamos dizer assim. Depois, avança para raça, embora esse tema ainda não seja tão profundamente trabalhado quanto o de gênero.  

Analisando o cenário, vendo relatórios e ações, percebemos que a maior parte continua trabalhando muito mais gênero e raça do que nos demais temas de diversidade. E é interessante essa discussão, porque pensamos em interseccionalidade das pessoas: nossas identidades se misturam, essas características se sobrepõem.  

Poderíamos falar de outros temas junto com raça, como gênero associado à sexualidade. Mas, quando pensamos em identidade de gênero ou orientação afetivo-sexual, são assuntos ainda difíceis. O tema de gerações não é tão polêmico, mas é interessante como poucas empresas trabalham essa questão, mesmo sendo algo atual e que afeta todos nós, já que estamos em algum desses espectros. 

Ainda falta trabalhar outros aspectos da diversidade, como orientação sexual, identidade de gênero e raça — sendo que raça continua sendo um calcanhar de Aquiles. Não é toda empresa que trata de forma aprofundada e, quando trata, muitas vezes, é apenas no mês de novembro, como se só nesse período existisse racismo. Há muitos passos e oportunidades para avançar nessa pauta. 

 

3. Quais são os desafios que a agenda ainda enfrenta dentro do setor? 

Um deles é o desconhecimento sobre o tema. Muitas pessoas não entendem o que é diversidade e inclusão, acham que é um tema que só tem a ver com grupos minoritários ou discriminados.   

Outra dificuldade é a polarização política dos últimos anos, que afeta a forma como as pessoas lidam com o assunto, porque esse tema, muitas, vezes, é transmitido de forma enviesada. Outro aspecto que influencia também é o cenário internacional. Vemos movimentos de retrocesso, como o backlash nos Estados Unidos, que impactam principalmente as grandes empresas multinacionais. Algumas acabam reduzindo iniciativas ou eliminando grupos de afinidade.  Outro ponto que influencia negativamente são as próprias fake news, os vieses de algoritmo. Muito desse conteúdo sobre o tema na internet vem de uma forma incorreta, e as pessoas aprendem por ali, reproduzem e trazem isso para dentro da empresa. 

Vejo retrocesso, mas, como sempre, apesar disso, vemos também empresas avançando dentro do seu ritmo — talvez não na velocidade que esperamos, mas avançando e abordando o tema.  

 

4. O que ainda falta para que a pauta de DE&I seja percebida como uma alavanca de inovação e competitividade, e não apenas como um projeto social? 

Acho que, no fim das contas, as empresas precisam entender que o resultado vem das pessoas — algo óbvio, mas que precisa ser dito, redito e lembrado constantemente. Se a empresa compreende isso, vai entender o valor de incluir pessoas diferentes, porque isso vai trazer mais diversidade, mais inovação. 

Mas isso é realmente bem difícil, porque o debate sobre diversidade, muitas vezes, é influenciado por preconceitos, vieses e falta de conhecimento. Há quem diga: ‘Isso é pauta partidária, não tem nada a ver com o que penso’. E aí, ela realmente, no primeiro momento, não vai vincular a diversidade à geração de inovação, criatividade e melhores resultados. 

Além disso, os resultados não aparecem rapidamente. É preciso paciência, resiliência, dedicação e comprometimento de toda a empresa para que isso aconteça. Dentro da lógica corporativa, é preciso ter rapidez, decidir rápido, preencher rapidamente a vaga. Por isso, muitas vezes, muitas empresas decidem pelo caminho mais rápido, do toque ligeiro, de só preencher determinadas vagas com pessoas diferentes e, por aí, vai. Então, é muito complexo. Sabemos das dificuldades e nosso intuito é sempre criar brechas dentro da estrutura institucional: identificar o que é possível fazer e começar por aí. 

 

5. O setor de petróleo, gás e biocombustíveis ainda enfrenta um grande desafio em relação à representatividade racial, especialmente em cargos de liderança. Quais barreiras estruturais você enxerga que ainda precisam ser superadas para ampliar a presença de pessoas negras nesse setor? 

A ausência de dados já é uma barreira. Eu preciso entender meu retrato e enfrentar o problema. E esse é o ponto. E chegamos ao ponto em que não podemos mais fugir.  

Entre os desafios, destaco a falta de debate racial dentro das empresas. Muitas não falam sobre racismo, porque acreditam na ideia de que “aqui, não discriminamos ninguém”. Mas não se diz por que não há pessoas negras ou por que o tema não é tratado. Essa ausência de discussão impede que se perceba o racismo institucional presente nas normas, processos, forma de lidar com as pessoas e na gestão do dia a dia. Ainda hoje, acredita-se no mito da democracia racial. Isso também influencia essa ideia das pessoas no ambiente corporativo de que somos um povo miscigenado e não tem por que falar disso.  

Há também um acordo tácito que favorece determinados perfis. Quando alguém diz ‘não consigo encontrar pessoas negras para essa vaga’, não questiona onde está procurando, como divulga a vaga ou quais exigências está impondo. Muitas vezes, requisitos como inglês poderiam ser flexibilizados sem impactar o desempenho. E ainda que impacte no início, essa pessoa vai ser treinada e capacitada como qualquer outra. Não existe nenhum ser humano que tenha entrado no mercado de trabalho 100% pronto. Então, por que exigir isso de determinados grupos e, de outros, não? 

Nós vemos quantos processos favorecem o racismo institucional e, muitas vezes, a empresa entra num movimento de “sempre foi assim”, deixando muita gente de fora, porque, às vezes, as pessoas acham que os processos, normas e procedimentos brotam do chão da empresa. Essas reflexões são importantes, porque, se não, vamos continuar deixando gente de fora.  

 

6. Garantir diversidade racial vai além da contratação. Como as empresas podem criar ambientes em que profissionais negros se sintam realmente incluídos, reconhecidos e com oportunidades de crescimento? 

Há diversas ações que as empresas podem fazer. Ela pode implementar um relatório com indicadores em todos os processos, em todo o ciclo de vida de uma pessoa, desde quanto ela entra. Quantas pessoas negras estão sendo capacitadas, promovidas, indicadas para cargos de liderança? Quantas pessoas negras sofrem assédio ou são vítimas de racismo intenso no ambiente corporativo?   

Além disso, realizar pesquisas de percepção com pessoas negras para entender como elas se sentem naquele ambiente de trabalho. Se possível, ter grupos de afinidade, porque eles representam um espaço em que as pessoas vão ter a oportunidade de pensar em ações.  

Outro ponto essencial é falar com as pessoas brancas. É preciso promover letramento e conscientização sobre branquitude. As pessoas brancas que atuam como aliadas precisam se conscientizar do papel delas em garantir um ambiente seguro.  

Outra ação que considero muito interessante são as mentorias reversas: colocar pessoas negras mentorando lideranças brancas, invertendo a lógica da hierarquia. E, claro, sempre que possível, aumentar a diversidade racial para evitar o tokenismo. Também é importante que pessoas negras não sejam chamadas apenas para falar sobre racismo, mas para discutir outros temas, como os profissionais que são. 

 

7. Quando falamos de diversidade, muitas vezes olhamos cada marcador separadamente — gênero, raça, geração, pessoas com deficiência. Como trazer a perspectiva da interseccionalidade para dentro das políticas corporativas, especialmente em uma indústria técnica e ainda predominantemente masculina? 

O primeiro ponto é compreender a interseccionalidade — entender que sobre cada pessoa recaem diversas características identitárias. O grande desafio é colocar isso em prática. Na hora de contratar, por exemplo, se a empresa quer fazer um programa voltado para mulheres, é preciso perguntar: de que mulheres estamos falando? Qual vai ser o perfil dessa vaga? 

Se pensarmos em mulheres negras, por que não incluir também mulheres com deficiência? E, se pensarmos em uma mulher com deficiência, mas só houver uma vaga, pode-se considerar uma mulher negra com deficiência. Dentro da lógica racista, quando se contrata alguém com uma característica considerada ‘diversa’, essa pessoa acaba sendo branca, acaba sendo cisgênero. 

Outro ponto, pensando no antes, é que o setor exige um nível técnico muito grande, a que grupos minorizados não tiveram acesso. E aí, a empresa precisa pensar na intencionalidade dela. O setor não quer ser o mais inovador, mais criativo e, inclusive, mais diverso? Então, vá fazer parcerias com escolas, com cursos técnicos, com consultorias que contratam pessoas transgênero, para, aí, dar um passo atrás. Aí, é questão de tempo.  

Se eu estou intencionalmente querendo aumentar minha equipe, torná-la mais diversa, sei que preciso investir tempo. Então, tenho que dar um passo atrás, muitas vezes, antes da contratação.  

A união faz a força, literalmente. A empresa precisa ter essa intencionalidade, que, muitas vezes, realmente não tem. E é por isso que eu acho que, sim, o poder público, a pressão social, a obrigatoriedade legislativa fazem com que a empresa se movimente. E, mesmo com a multa, tem muita empresa que não faz.  

 

8. O que o 20 de novembro representa para você dentro dessa pauta? E que mensagem você deixaria para as empresas e profissionais do setor sobre o papel de cada um na promoção da equidade racial? 

Acredito que o dia 20 de novembro é uma data de oportunidade para falarmos sobre racismo no Brasil, mas não deveria ser a única. As empresas deveriam se organizar para implementar o ‘20 de novembro’ todos os meses, para que as pessoas compreendam que o racismo, infelizmente, faz parte da normalidade da sociedade brasileira. 

Já que essa data está no calendário da diversidade, que ela seja trabalhada, aproveitada e discutida e, no caso, seja uma oportunidade de a empresa trabalhar o tema. Não apenas conscientizar, mas que seja uma data de ação, em que a empresa aproveite para mostrar o que está fazendo.  

Quando analisamos a questão racial, percebemos que esse, muitas vezes, acaba sendo um tema sobre o qual as pessoas não agem, não se posicionam. Então, o recado final é que precisamos nos posicionar — não apenas dentro da empresa, mas em diversos espaços: diante de uma piada em um grupo de WhatsApp, de uma fake news, de uma fala preconceituosa, de um vídeo de humor que ofende pessoas negras, de um xingamento durante um jogo de futebol.  

Eu acho que é isso que ainda falta na sociedade brasileira. Falta a conscientização. O problema do racismo não é das pessoas negras: é da sociedade brasileira e de quem vive dentro dela – sejam pessoas negras e não negras. E falta ação.  

Acho que esse posicionamento é importante e fundamental, porque estamos falando de um problema que está há muito tempo nos influenciando, mas, ainda hoje, há relutância em falar e, consequentemente, em agir. Em 2025, quase 2026, estamos quase chegando na meta final dos ODS, e ainda falamos sobre a existência do racismo no Brasil. Isso é inadmissível. 

 

[1] Censo 2022: pela primeira vez, desde 1991, a maior parte da população do Brasil se declara parda. Agência de Notícias IBGE / Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38719-censo-2022-pela-primeira-vez-desde-1991-a-maior-parte-da-populacao-do-brasil-se-declara-parda  

[2] Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2023 / IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv102052.pdf 

[3] Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. 2ª edição. IBGE, 2022. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101972_informativo.pdf